sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Os comedores de pedras

Essa estória foi finalista do Festival Cultural Banco do Brasil no ano passado. Pena que não teve esse ano... :(




Os comedores de pedras



            Desde que vi aquela carcaça bovina abandonada a toda sorte de infortúnios aos quais somos passivos neste estranho mundo de loucos, não consigo afastar de mim a ideia de arrancar-lhe os dentes a marteladas. Um desejo meio sado-anatômico ou escatológico, não sei, mas que me fez muito bem, visto que antes estava assolada por outras vontades que acabaram danificando alguns dos melhores exemplares de minha arcada dentária. Ao passo que acabo de notar uma grande recorrência dental em minha vida, penso se não deveria praticar o ofício odontológico, ou mesmo estudar a Inconfidência Mineira. Deixando as dúvidas profissionais de lado e não resistindo ao novo desejo, me vejo parada no acostamento de uma estrada que passava na divisa de Minas - São Paulo, curvada a 90 graus debaixo de um sol escaldante e na presença de moscas, dele e da dita carcaça. Com ferramentas típicas de um geólogo, eu martelo a boca bovina com tal voracidade e desejo que uma plasta de baba escorre de minha boca e pinga no martelo ao mesmo tempo em que o enorme dente do finado zebu é expelido sem nenhum dano.


            Enfim, meus músculos se relaxam, dou um suspiro aliviado e deixo cair o martelo ao meu lado com uma sensação de trabalho cumprido e gozo libertado.
            Olho mais uma vez para a carcaça do animal pensando em como meu ato representa a violação de um corpo, cadavérico, mas um corpo. No caso, uma cabeça. Não fui assolada por nenhum sentimento de culpa. Um corpo morto nada significa, é comida de vermes, é adubo para a terra. A vida já foi transferida para outro lugar, para o todo. Mas, olhando para o cadáver bovino e pensando na morte, nada mais normal que conduzir meus pensamentos para o futuro e para a minha própria morte. Porém, contrariamente ao curso natural do pensamento, volto minha mente ao passado e começo a pensar em como fui parar nessa estrada desconhecida a martelar uma cabeça a fim de arrancar-lhes os dentes. Não deveria estar no conforto de minha casa ocupando-me em ler Memórias Póstumas de Brás Cubas? Percebo agora que morte e dentes é uma constante em minha vida.
            Era um daqueles domingos bobos com gosto de sol quente e cheiro de comida de mãe, ou de sogra ou de avó. Nada que a cidade oferecesse de quase interessante nos faria mudar de ideia em relação a pegar a estrada e ir contra o vento. Quando se faz um pacto para viver, devemos experimentar todas as sensações e tudo o que o mundo tem para nos ensinar. Eu já havia sentido vontade de comer coisas que não eram feitas para tal, como cortinas, bóias e giz de cera. Cores em geral. Já o geólogo, não sei. Ignoro se presenciei sua primeira vez em comer algo de tão difícil digestão ou se era costumaz que fizesse isso. Talvez a segunda opção, já que o fez muito espontaneamente e de bom grado. “Vamos comer pedras”, foi o que o ouvi dizendo. Comer pedras justo hoje que tenho vontade de comer comida? A comida da mãe dele... O que será que ela tem de especial? Digo a comida, não a mãe dele. “O quê?” – pergunto. “Vamos coletar pedras”. Ah! Coletar pedras! Coletar! Não comer, coletar! “Vamos a campo, a gente pega a moto e vai coletar algumas amostras, isto é, se você quiser”. Se eu quero? Se eu quero? Quem não iria querer ir para a beira de um barranco no meio da estrada catar pedras em um domingo ensolarado? “Claro que quero”.
            Um convite para coletar amostras havia me sido feito duas horas antes de me encontrar na situação de Tiradentes moderno. “Tenta com isso”. O geólogo me passa a talhadeira. “Bate o martelo nela e ela na junção do dente com o osso”. Que ideia genial! Assim como o diretor de cinema tem uma câmera, o pintor tem um pincel, o escritor tem uma caneta, o geólogo tem uma talhadeira, que funciona juntamente com o martelo geológico fêmea. Isso mesmo. Mar-te-lo-ge-o-ló-gi-co-fê-mea. Admito ser um nome um tanto quanto estranho para uma ferramenta tão simples. Mas já que a situação também não era lá muito trivial, aceitei de bom grado dar umas boas marteladas na talhadeira com o martelo geológico fêmea. Isso não me impediu de sentir uma pontada de ciúmes, visto minha condição de mulher no mundo em que tudo é luta e conquista, ainda tenho que disputar o amor de um homem com um martelo. Ou melhor, uma martela!
            E mais uma vez em um curto espaço de minutos, sinto mais um fio de saliva escorrer pelo canto de minha boca, ao ver o belo exemplar que o geólogo tirou do nada, ou melhor, do barranco. Era uma daquelas não muito duras, não muito moles, querendo virar terra... “Achei a amostra que eu estava procurando”. Isso! Amostra. Naquele momento me senti como um daqueles dependentes químicos para os quais todo dia é uma luta, e um único estímulo faz tudo desabar. Passei a língua pelos dentes e senti as restaurações não muito bem feitas, realizadas por um odontologista que não teve a curiosidade de perguntar como eu os havia quebrado daquele jeito. E, diga-se de passagem, me cobrou um precinho camarada e acabou me contando alguns segredinhos de alcova guardados naquele consultório. Ainda faço visitas ao dentista, mas não para restaurar os dentes.
            Amostra. Aquilo mais me parecia um banquete. Um banquete sinestésico em que uma simples visão despertava em mim aquele gosto amargo na boca. Minto! Um azedo que retorcia meu rosto e coçava minhas gengivas. Não, não! O doce mais doce que qualquer poema apaixonado. “Que bonita” – eu disse. “Parece boa. Qual será o gosto?” Para a minha surpresa, o geólogo levou a amostra à boca e deu-lhe uma lambida canina. “Tem gosto de pudim”. Ao ouvir tal resposta, senti por todo meu corpo uma excitação avassaladora. Não sabia se pela doçura que a pedra apresentava ou se pela cumplicidade que ele me apresentava. “É doce” – pensei ou disse, já não sei. “E ele também... Ele também é assim.” Deixei cair as ferramentas geológicas femininas e considerei terminado o ofício de extração dentária de bovinos. Indo em direção do geólogo, só tinha olhos para a pedra-pudim. Que antítese de botequim. Pedra-pudim! “Deixa eu experimentar”. O geólogo me passou a amostra e eu a manuseei com todo o cuidado. Ao sentir sua textura em minhas mãos, me vi num dèja-vu alucinante em que sons, imagens, odores e sensações se misturavam em uma louca sinfonia de cores e sabores que dançavam por minha cabeça.
            “Mudei de ideia. Toma, põe na bolsa” – disse devolvendo a pedra ao geólogo e virando as costas a ele. Senti uma gota de suor escorrer pela testa. “Você não quer?” – ele me perguntou. “Não, prefiro as cortinas da sua casa”. O geólogo explodiu em uma gargalhada solitária. Com o canto do olho, vi ele pegando do chão o martelo geológico fêmea. Com ele (ou ela), ele quebra um pedaço da amostra e o coloca na boca. Começa a mastigar incessantemente. O sol me queima o rosto, sinto mais gotas de suor escorrerem pelo pescoço enquanto ouço o som de dentes quebrando algo duro ao mesmo tempo em que escuto os segredinhos de alcova sussurrados na voz safada daquele dentista. Me volto para o geólogo e vejo fios de sangue escorrer por sua boca, o sol me queima, não há vento nenhum, o ar parado e vermelho corta a respiração. Ouço barulho de marteladas, aquela carcaça ao meu lado jorra também sangue pela mandíbula, sinto que estou segurando algo, será a talhadeira? Não, não é, ergo minha mão na altura dos olhos e vejo aquele motorzinho de dentista sujo de sangue enquanto o maldito vestido de branco me toca no pescoço e sussurra no meu ouvido. No esquerdo.
            De repente me vejo sentada na moto com algumas pessoas próximas a mim. Mas acho que não estou na moto, isso se parece mais com uma cadeira. Há uma garota com cara de insone e uma tatuagem que parece um símbolo egípcio. Ela espera alguém. Vejo uma moça um pouco angustiada para se lembrar de algo, ela repete algo incessantemente, algo sobre um sargento, mas não consigo ouvir muito bem, pois sua voz é abafada pelos gritos de um rapaz na sala ao lado. Vejo uma garota sentada em um tapete, de braços cruzados segurando uma lâmpada. Enquanto observo, vejo se aproximar de mim um homem grande, alto. Quem será ele? É o dentista? O que ele está fazendo aqui? O que ele tem na mão? Será uma pedra? O homem se aproxima bastante a ponto de eu notar que ele não é o maldito dentista. Eu o confundi, pois está vestido de branco. É o geólogo.

            “Que calor faz hoje, não? Aqui está seu comprimido. Não o mastigue, hein? Engula inteiro com água. Toma, trouxe uma caixa de giz colorido pra você”. 

2 comentários:

  1. Parabéns, vc é uma mulher muito talentosa, gostei muito e achei interessante duas coisas, a moto e o sargento...kkkk
    Leonardo Kaiser

    ResponderExcluir