terça-feira, 7 de julho de 2015

Paxiúba II

Eu sou a árvore que anda
Nas raízes tenho asas
Tronco forte, folhas verdes
Os meus galhos miram o céu
Tempestades não me abatem
Bato as asas com o vento.

domingo, 15 de março de 2015

A Corja dos Tarados

       (Essa estória escrevi há anos atrás. Dedico aos amigos que me acompanharam durante anos       seguidos ao Fórum das Letras de Ouro Preto - Macu, Vô e Lot - obrigada pelos momentos tão divertidos de descobertas, palhaçadas e, claro, Literatura. E à Karla Daniela que falou tanta besteira em um desses dias que inspirou essa estória! Beijos e saudades!)   



        Era uma moça de seus vinte e poucos anos, uma garota praticamente, pelo menos na cabeça era uma garota. Gostava de ler, às vezes de escrever, lia muito e escrevia pouco porque não gostava do que escrevia, mas gostava do que lia. Lia tanto e gostava tanto que muitas vezes acreditava. Acreditava que era verdade e se escondia debaixo dos lençóis. Acreditava tanto que procurava seu passaporte para a próxima viagem, apesar de nunca ter tido um. Onde será que o havia deixado? Lembrava que tinha a capa vermelha. Vermelho como seu coração, que batia mais forte a cada vez que abria um livro.                                  
Tinha os pensamentos atravessados. Sabe, ideias meio fora... fora de... Digamos, fora do senso comum; não que o senso comum seja o certo e suas ideias erradas, mas, cá entre nós, tinha os pensamentos... assim... atravessados. Às vezes vivia o que acreditava e acreditava no intocável. Não no irreal, porque existia, mas existia apenas na sua imaginação. E isso fazia com que fosse um pouco incompreendida, mas só um pouco.
Certa vez topou com um rapaz na rua, que, na tentativa de se comunicar, deu um grito grave e alto para ela. E ela respondeu com um ronco, digamos, suíno. O rapaz não gostando da resposta, fez uma cara de desaprovação e virou as costas. Ela não entendendo, pensou que não era a única incompreendida em um raio de alguns metros, então deveria existir muitos incompreendidos mundo afora. Isso a fez pensar o quão ordinários nós somos.
Pois é! Então surge na cidade um encontro de escritores. É, era uma cidade, assim, com ares culturais e eventos afins. Então fizeram um encontro – dos grandes! – com escritores internacionais para falar sobre Literatura e também... sobre afins. E lá vai a moça ao encontro voando em seu tapete árabe com a lâmpada mágica a tira-colo. Assistiu a todos os afins, mas a verdade é que, quando o papo era Literatura, enfiava a cabeça na lâmpada e achava que era o gênio. Só não sabia que não estava dentro da lâmpada, e sim que a lâmpada estava dentro de sua cabeça. E nas indas e vindas das palavras, ela se encantou mesmo com aqueles vindos de além-mar, lá de longe, onde nós nascemos há milhares de anos atrás, onde o ar é vidro ardendo e tudo é um pouco de nada. Ela se encantou mesmo foi com os angolanos. E tinha um tal de Agualusa que era até um homem bem apessoado, desses simpáticos reprodutores, varões de família... Um touro de cavanhaque. Corações e estrelas explodiam pela cabeça da moça quando via passar o dito cujo. Estava apaixonada!
Foi quando teve a mirabolante ideia de pedir ao escritor que assinasse seu livro. Assim teria oportunidade de ficar próxima a ele, puxaria um assunto, trocaria olhares e o resto... o resto ela sabia que estaria nas mãos do destino. De livro e caneta na mão, procura Agualusa por todos os contos. Mas fica dois dias pra lá e pra cá procurando o homem. – Ele deve gostar mesmo é de tocas. Hum... também gosto de tocas, vamos nos dar muito bem.
Nesse ponto já notamos que o tapete árabe estava sim bastante alto. E eis que finalmente encontra seu amado. Chega timidamente, educadamente, um oi tudo bem você poderia? Mas sim como não qual é o seu nome? Tal.
“Para Tal...
    Com a amizade de J. Agualusa.”
  Ele assinou, ela agradeceu e quando ele virou as costas e foi embora, ela caiu do tapete.
  - Só isso? Mas só isso? Ele não me ama? Como pode só escrever isso?
E ela se sentou e ficou perplexa e cabisbaixa olhando para a dedicatória do autor: “amizade”.
   - Amizade... amizade... Eu queria mais que amizade... Um beijo pelo menos; pelo menos pra começar.
E ela ficou lá, tentando encontrar amor na dedicatória dele, mas... Sem encontrar, foi atrás do touro angolano e como era mesmo atravessada, foi tirar satisfações.
- Olha aqui, ôôô... meu querido. O seu conterrâneo de trancinhas desenha flores e corações nas dedicatórias, manda beijos, escreve amor. Está cercado de meninas apaixonadas. Mas eu escolhi você. Você! E você não me deu mais que amizade. Você não me ama? Por que não me dedica amor?
- Mas eu não te conheço, como posso te amar?
  - Ah, dá um jeito, reescreve isso aí, pelo menos põe uma amizade colorida...
A garota empurra o livro nas mãos do homem assustado. Pelo menos uma amizade colorida é mais que uma amizade normal. Agualusa escreve a palavra “amizade” com uma letra de cada cor e entrega o livro de volta para a garota.
- Quer saber? Eu quero que você e sua amizade vão para o raio que os partam! – ela esbraveja.
E joga o livro na cara do angolano. Dá as costas a ele e parte em busca de outro. Outro angolano. Onjack era um deles. Um escritor mais jovem, moderno, carismático, que enchia as dedicatórias de flores e beijinhos. Ela não precisava de um varão, de um touro. Precisava sim de um romance derretido que os levasse juntos de tapete acima das nuvens da África e fossem em direção do céu da Turquia. Ela se apaixonara pelo jovem angolano atencioso e de sorriso bonito. E ela achava que ele também. Por isso, chegou em seu tapete voador e sentou-se próxima ao palco onde o angolano e mais algumas pessoas falariam em alguns instantes. Após ouvir o debate que foi mais um bate-papo descontraído e se afundar de carinhos pelo sotaque cheio de “Ss” chiados e “swás”, a garota levantou a mão para fazer uma pergunta:
- Onjack, eu sei que esse não é o seu nome real. Qual é, então?
O rapaz de além-mar fica com uma cara mesmo pasma e ela tenta se explicar:
- Assim, pra hora da intimidade, eu quero sussurrar seu nome verdadeiro no seu ouvido esquerdo...
- Que intimidade? – com sotaque angolano.
  - A NOSSA intimidade.
- Nós não temos intimidade nenhuma.
- Não, mas teremos em breve.
- Não, não teremos! – todos perplexos.
- Eu te garanto que teremos. – e ela se senta, cruza os braços e fica, com um sorriso débil nos lábios, admirando seu amado de trancinhas nos cabelos. Todos se olham perplexos sem dizer palavra alguma. Alguém levanta o braço e faz uma pergunta menos atravessada. Tudo volta ao normal. Um tempo depois a garota acaba tirando a cabeça de dentro da lâmpada e desistindo de seu romance derretido. Ela descobre que ele vai estudar por uns tempos na Itália e não quer ir com ele.
- Eu queria África, não Europa.
  Ao final do encontro, eis que surge Sérgio, um coroão brasileiro, autor de romances sangrentos e safados. Nossa protagonista, já cansada de ter o coração partido, e muito curiosa para saber o que iria dizer o coroa, deu o ar de sua graça na palestra. Uma curiosidade defensiva, pois, ao ler algumas das obras de Sérgio, torceu muito o nariz, blasfemou e jogou os livros contra a parede. E muito se admirou com aquele coroa boêmio carioca ao ver que, convidado a falar sobre vôos noturnos, ele nada mais queria que falar sobre namoradas e caipirinhas.
- É um velho tarado mesmo...
  E tão admirada ficou com essa visão de mundo suja e monstruosa, que ela se prostrou a divagar sobre qual era a sua verdadeira metafísica, e se lembrou que Fernando certa vez lhe disse que não há mais metafísica no mundo senão chocolates. A garota, então, em um ímpeto se levantou e correu em busca de um chocolate, que, ao encontrar por dois reais e trinta centavos, o come com a mais pura de suas verdades. Ao engolir o último pedaço, ela sente que seu gênio da lâmpada foi em busca de um outro Aladim, levando junto com ele o tapete voador. E com uma sensação de medo, realidade e clareza, a única coisa que vem à mente da menina é um desejo arrebatador de tomar uma caipirinha.
Com passos decididos ela vai em direção a Sérgio para lhe dizer como sentiu raiva ao ler seus livros, e, quem sabe, convidá-lo para uma bebida. Ela sabia. Ela era um deles. Ela agora fazia parte daquela corja. Aquela corja de tarados.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Entre o expresso e o vinho

                                                                                                                  Para Thalita, mesmo caminho.


   Ao tocar o pé direito no chão frio ela desperta para todas as sensações que irá degustar e enfrentar durante o dia. Antes de mais nada deve estar preparada para este evento, deve estar consciente, desperta, liberta. Deve ser capaz de sentir seu corpo por completo, o externo e o interno, deve ser capaz de passar pelo furacão de emoções que irá tentar levá-la sem rumo. Deve estar pronta para viver. 
     Ela se senta confortavelmente em seu tapete, fecha os olhos e se afunda na imensidão de seu próprio eu. O tempo ali não passa, pois ele não existe. Ao se sentir um pouco preparada para o dia, se espreguiça de forma que possa dobrar todas as curvas de seu corpo. Estes movimentos deviam ser feitos todos os dias, pelo menos pelas mulheres que gostam de si mesmas. Elas não sabem do que são capazes. Ela sabe. 
     Então ela está pronta. Ela liga a música, uma música para começar o dia, pode ser um jazz, pode ser um mantra, são as que ela mais gosta de ouvir pela manhã. Ela pega com carinho a velha cafeteira que seu pai lhe deu. Os presentes dados pelo pai lhe evocam pensamentos amáveis, são sempre úteis e sempre bons. Ela não entende de café, mas adora o expresso feito naquela velha cafeteira. Prepara sua mesa de café da manhã, com os sabores de gosta de começar o dia. O café que os pais enviaram para que ela pudesse preparar na cafeteira. Ela gosta forte, com pouco açúcar. A faz lembrar da dureza do mundo. Não da vida. Do mundo. A vida, você sente seu doce lá no fundo. No fundo do amargo do café, sempre há o doce. Este doce deve ser descoberto e quando você o descobre, aí tudo muda. Mas só descobrindo para saber. Ela está descobrindo. Ela sabe que é árduo este trabalho, mas a recompensa é indescritível. E na sua mesa estão todos os sabores que vão passar pelo seu dia. O azedo do queijo, o amargo do café, o doce da fruta, e um não sei o quê de canela. São as surpresas e os estranhamentos. Esse é o sabor mais gostoso, pois é o sabor do inesperado. E o inesperado não está naquilo que acontece ao nosso redor. Está naquilo que sentimos com o que acontece ao nosso redor e em como conseguimos lidar com aquilo que sentimos. É nisso que consiste a conquista de nós mesmos. Vamos ser cegados pela raiva ou pela alegria ou vamos conseguir observar essas emoções de maneira consciente? Este é o sabor da canela. Isto não sabemos. Só vivemos. 
     E neste evento de horas ela é abordada por todas as sensações e sentimentos pelos quais se preparou pela manhã. Ela não enfrentou dragões, não pulou de paraquedas, não se encontrou com Buda, não teve orgasmos múltiplos, não levou um tirou e não saiu de seu corpo. Ela apenas viveu uma quarta-feira de trabalho como qualquer outra quarta-feira. Ela fez suas coisinhas que sempre faz. Ela varreu a casa porque a casa varrida valia mais pela sensação de aconchego do que pela casa limpa em si. Ela pedalou sua bicicleta pela estrada de terra com o vento em seu rosto sentindo uma sensação de liberdade e prazer que só aquelas pedaladas podem fazê-la sentir. Ela sentiu medo de o pneu furar no meio da estrada e não saber o que fazer. Ela se preparou para o trabalho com a sensação de que preferia ficar em casa lendo seu livro. Ela se cansou no trabalho com o excesso de coisas a fazer e a sensação de que nunca iria terminar. Ela sentiu raiva com a falta de educação das pessoas com quem interage no trabalho. Sentiu frustração, impotência, tristeza. Mas sentiu também alegria e sensação de serviço cumprido. Ela relaxou depois do trabalho na aula de ioga. E voltou ansiosa para casa, sabendo que o Saramago a esperava. É sempre ele. E ele lhe causa emoções tão avassaladoras que não consegue conter, mas também que não consegue expressar. E ela entende que algumas coisas, ou muitas, não podem ser ditas. Apenas porque não se consegue dizê-las. 
     E ao final do dia, que ela começou com o forte do expresso, ela termina com a delicadeza de um Merlot. Que é o que se pede no momento. Ela liga a música mais uma vez. Pode ser um jazz, melhor se for um blues. Que é o que gosta de ouvir à noite. E ela bebe seu vinho de um vermelho escuro fantasioso e aquele sabor que não se sabe o que é. Um acre, doce, suave e marcante. E reflete em todas as emoções que sentiu durante o dia. Ela conseguiu as observar e manter centro em si mesma, ou se deixou pelo redemoinho que nos faz perder de onde devíamos estar? Ela vivenciou todas as emoções que lhe apareceram de forma viva e consciente? Em suas reflexões, é isso que ela procura. Eu vivi o dia de hoje? Com a resposta, ela deita em sua cama e sente todo o seu corpo, externo e interno, uma coisa só, uma só energia, ela e a vida, ela e o mundo, ela, a vida e o mundo. Uma coisa só.
     Adormece.