terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Entre o expresso e o vinho

                                                                                                                  Para Thalita, mesmo caminho.


   Ao tocar o pé direito no chão frio ela desperta para todas as sensações que irá degustar e enfrentar durante o dia. Antes de mais nada deve estar preparada para este evento, deve estar consciente, desperta, liberta. Deve ser capaz de sentir seu corpo por completo, o externo e o interno, deve ser capaz de passar pelo furacão de emoções que irá tentar levá-la sem rumo. Deve estar pronta para viver. 
     Ela se senta confortavelmente em seu tapete, fecha os olhos e se afunda na imensidão de seu próprio eu. O tempo ali não passa, pois ele não existe. Ao se sentir um pouco preparada para o dia, se espreguiça de forma que possa dobrar todas as curvas de seu corpo. Estes movimentos deviam ser feitos todos os dias, pelo menos pelas mulheres que gostam de si mesmas. Elas não sabem do que são capazes. Ela sabe. 
     Então ela está pronta. Ela liga a música, uma música para começar o dia, pode ser um jazz, pode ser um mantra, são as que ela mais gosta de ouvir pela manhã. Ela pega com carinho a velha cafeteira que seu pai lhe deu. Os presentes dados pelo pai lhe evocam pensamentos amáveis, são sempre úteis e sempre bons. Ela não entende de café, mas adora o expresso feito naquela velha cafeteira. Prepara sua mesa de café da manhã, com os sabores de gosta de começar o dia. O café que os pais enviaram para que ela pudesse preparar na cafeteira. Ela gosta forte, com pouco açúcar. A faz lembrar da dureza do mundo. Não da vida. Do mundo. A vida, você sente seu doce lá no fundo. No fundo do amargo do café, sempre há o doce. Este doce deve ser descoberto e quando você o descobre, aí tudo muda. Mas só descobrindo para saber. Ela está descobrindo. Ela sabe que é árduo este trabalho, mas a recompensa é indescritível. E na sua mesa estão todos os sabores que vão passar pelo seu dia. O azedo do queijo, o amargo do café, o doce da fruta, e um não sei o quê de canela. São as surpresas e os estranhamentos. Esse é o sabor mais gostoso, pois é o sabor do inesperado. E o inesperado não está naquilo que acontece ao nosso redor. Está naquilo que sentimos com o que acontece ao nosso redor e em como conseguimos lidar com aquilo que sentimos. É nisso que consiste a conquista de nós mesmos. Vamos ser cegados pela raiva ou pela alegria ou vamos conseguir observar essas emoções de maneira consciente? Este é o sabor da canela. Isto não sabemos. Só vivemos. 
     E neste evento de horas ela é abordada por todas as sensações e sentimentos pelos quais se preparou pela manhã. Ela não enfrentou dragões, não pulou de paraquedas, não se encontrou com Buda, não teve orgasmos múltiplos, não levou um tirou e não saiu de seu corpo. Ela apenas viveu uma quarta-feira de trabalho como qualquer outra quarta-feira. Ela fez suas coisinhas que sempre faz. Ela varreu a casa porque a casa varrida valia mais pela sensação de aconchego do que pela casa limpa em si. Ela pedalou sua bicicleta pela estrada de terra com o vento em seu rosto sentindo uma sensação de liberdade e prazer que só aquelas pedaladas podem fazê-la sentir. Ela sentiu medo de o pneu furar no meio da estrada e não saber o que fazer. Ela se preparou para o trabalho com a sensação de que preferia ficar em casa lendo seu livro. Ela se cansou no trabalho com o excesso de coisas a fazer e a sensação de que nunca iria terminar. Ela sentiu raiva com a falta de educação das pessoas com quem interage no trabalho. Sentiu frustração, impotência, tristeza. Mas sentiu também alegria e sensação de serviço cumprido. Ela relaxou depois do trabalho na aula de ioga. E voltou ansiosa para casa, sabendo que o Saramago a esperava. É sempre ele. E ele lhe causa emoções tão avassaladoras que não consegue conter, mas também que não consegue expressar. E ela entende que algumas coisas, ou muitas, não podem ser ditas. Apenas porque não se consegue dizê-las. 
     E ao final do dia, que ela começou com o forte do expresso, ela termina com a delicadeza de um Merlot. Que é o que se pede no momento. Ela liga a música mais uma vez. Pode ser um jazz, melhor se for um blues. Que é o que gosta de ouvir à noite. E ela bebe seu vinho de um vermelho escuro fantasioso e aquele sabor que não se sabe o que é. Um acre, doce, suave e marcante. E reflete em todas as emoções que sentiu durante o dia. Ela conseguiu as observar e manter centro em si mesma, ou se deixou pelo redemoinho que nos faz perder de onde devíamos estar? Ela vivenciou todas as emoções que lhe apareceram de forma viva e consciente? Em suas reflexões, é isso que ela procura. Eu vivi o dia de hoje? Com a resposta, ela deita em sua cama e sente todo o seu corpo, externo e interno, uma coisa só, uma só energia, ela e a vida, ela e o mundo, ela, a vida e o mundo. Uma coisa só.
     Adormece.

2 comentários:

  1. E a linda princeaa adormece, lindo texto princesa. Parabéns, bjsss.

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  2. Lindo, lindo, lindo! Ameeeeeeeeeeeeei! Fquei lisonjeada com a dedicatória!
    Beijos no coração!

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