domingo, 15 de março de 2015

A Corja dos Tarados

       (Essa estória escrevi há anos atrás. Dedico aos amigos que me acompanharam durante anos       seguidos ao Fórum das Letras de Ouro Preto - Macu, Vô e Lot - obrigada pelos momentos tão divertidos de descobertas, palhaçadas e, claro, Literatura. E à Karla Daniela que falou tanta besteira em um desses dias que inspirou essa estória! Beijos e saudades!)   



        Era uma moça de seus vinte e poucos anos, uma garota praticamente, pelo menos na cabeça era uma garota. Gostava de ler, às vezes de escrever, lia muito e escrevia pouco porque não gostava do que escrevia, mas gostava do que lia. Lia tanto e gostava tanto que muitas vezes acreditava. Acreditava que era verdade e se escondia debaixo dos lençóis. Acreditava tanto que procurava seu passaporte para a próxima viagem, apesar de nunca ter tido um. Onde será que o havia deixado? Lembrava que tinha a capa vermelha. Vermelho como seu coração, que batia mais forte a cada vez que abria um livro.                                  
Tinha os pensamentos atravessados. Sabe, ideias meio fora... fora de... Digamos, fora do senso comum; não que o senso comum seja o certo e suas ideias erradas, mas, cá entre nós, tinha os pensamentos... assim... atravessados. Às vezes vivia o que acreditava e acreditava no intocável. Não no irreal, porque existia, mas existia apenas na sua imaginação. E isso fazia com que fosse um pouco incompreendida, mas só um pouco.
Certa vez topou com um rapaz na rua, que, na tentativa de se comunicar, deu um grito grave e alto para ela. E ela respondeu com um ronco, digamos, suíno. O rapaz não gostando da resposta, fez uma cara de desaprovação e virou as costas. Ela não entendendo, pensou que não era a única incompreendida em um raio de alguns metros, então deveria existir muitos incompreendidos mundo afora. Isso a fez pensar o quão ordinários nós somos.
Pois é! Então surge na cidade um encontro de escritores. É, era uma cidade, assim, com ares culturais e eventos afins. Então fizeram um encontro – dos grandes! – com escritores internacionais para falar sobre Literatura e também... sobre afins. E lá vai a moça ao encontro voando em seu tapete árabe com a lâmpada mágica a tira-colo. Assistiu a todos os afins, mas a verdade é que, quando o papo era Literatura, enfiava a cabeça na lâmpada e achava que era o gênio. Só não sabia que não estava dentro da lâmpada, e sim que a lâmpada estava dentro de sua cabeça. E nas indas e vindas das palavras, ela se encantou mesmo com aqueles vindos de além-mar, lá de longe, onde nós nascemos há milhares de anos atrás, onde o ar é vidro ardendo e tudo é um pouco de nada. Ela se encantou mesmo foi com os angolanos. E tinha um tal de Agualusa que era até um homem bem apessoado, desses simpáticos reprodutores, varões de família... Um touro de cavanhaque. Corações e estrelas explodiam pela cabeça da moça quando via passar o dito cujo. Estava apaixonada!
Foi quando teve a mirabolante ideia de pedir ao escritor que assinasse seu livro. Assim teria oportunidade de ficar próxima a ele, puxaria um assunto, trocaria olhares e o resto... o resto ela sabia que estaria nas mãos do destino. De livro e caneta na mão, procura Agualusa por todos os contos. Mas fica dois dias pra lá e pra cá procurando o homem. – Ele deve gostar mesmo é de tocas. Hum... também gosto de tocas, vamos nos dar muito bem.
Nesse ponto já notamos que o tapete árabe estava sim bastante alto. E eis que finalmente encontra seu amado. Chega timidamente, educadamente, um oi tudo bem você poderia? Mas sim como não qual é o seu nome? Tal.
“Para Tal...
    Com a amizade de J. Agualusa.”
  Ele assinou, ela agradeceu e quando ele virou as costas e foi embora, ela caiu do tapete.
  - Só isso? Mas só isso? Ele não me ama? Como pode só escrever isso?
E ela se sentou e ficou perplexa e cabisbaixa olhando para a dedicatória do autor: “amizade”.
   - Amizade... amizade... Eu queria mais que amizade... Um beijo pelo menos; pelo menos pra começar.
E ela ficou lá, tentando encontrar amor na dedicatória dele, mas... Sem encontrar, foi atrás do touro angolano e como era mesmo atravessada, foi tirar satisfações.
- Olha aqui, ôôô... meu querido. O seu conterrâneo de trancinhas desenha flores e corações nas dedicatórias, manda beijos, escreve amor. Está cercado de meninas apaixonadas. Mas eu escolhi você. Você! E você não me deu mais que amizade. Você não me ama? Por que não me dedica amor?
- Mas eu não te conheço, como posso te amar?
  - Ah, dá um jeito, reescreve isso aí, pelo menos põe uma amizade colorida...
A garota empurra o livro nas mãos do homem assustado. Pelo menos uma amizade colorida é mais que uma amizade normal. Agualusa escreve a palavra “amizade” com uma letra de cada cor e entrega o livro de volta para a garota.
- Quer saber? Eu quero que você e sua amizade vão para o raio que os partam! – ela esbraveja.
E joga o livro na cara do angolano. Dá as costas a ele e parte em busca de outro. Outro angolano. Onjack era um deles. Um escritor mais jovem, moderno, carismático, que enchia as dedicatórias de flores e beijinhos. Ela não precisava de um varão, de um touro. Precisava sim de um romance derretido que os levasse juntos de tapete acima das nuvens da África e fossem em direção do céu da Turquia. Ela se apaixonara pelo jovem angolano atencioso e de sorriso bonito. E ela achava que ele também. Por isso, chegou em seu tapete voador e sentou-se próxima ao palco onde o angolano e mais algumas pessoas falariam em alguns instantes. Após ouvir o debate que foi mais um bate-papo descontraído e se afundar de carinhos pelo sotaque cheio de “Ss” chiados e “swás”, a garota levantou a mão para fazer uma pergunta:
- Onjack, eu sei que esse não é o seu nome real. Qual é, então?
O rapaz de além-mar fica com uma cara mesmo pasma e ela tenta se explicar:
- Assim, pra hora da intimidade, eu quero sussurrar seu nome verdadeiro no seu ouvido esquerdo...
- Que intimidade? – com sotaque angolano.
  - A NOSSA intimidade.
- Nós não temos intimidade nenhuma.
- Não, mas teremos em breve.
- Não, não teremos! – todos perplexos.
- Eu te garanto que teremos. – e ela se senta, cruza os braços e fica, com um sorriso débil nos lábios, admirando seu amado de trancinhas nos cabelos. Todos se olham perplexos sem dizer palavra alguma. Alguém levanta o braço e faz uma pergunta menos atravessada. Tudo volta ao normal. Um tempo depois a garota acaba tirando a cabeça de dentro da lâmpada e desistindo de seu romance derretido. Ela descobre que ele vai estudar por uns tempos na Itália e não quer ir com ele.
- Eu queria África, não Europa.
  Ao final do encontro, eis que surge Sérgio, um coroão brasileiro, autor de romances sangrentos e safados. Nossa protagonista, já cansada de ter o coração partido, e muito curiosa para saber o que iria dizer o coroa, deu o ar de sua graça na palestra. Uma curiosidade defensiva, pois, ao ler algumas das obras de Sérgio, torceu muito o nariz, blasfemou e jogou os livros contra a parede. E muito se admirou com aquele coroa boêmio carioca ao ver que, convidado a falar sobre vôos noturnos, ele nada mais queria que falar sobre namoradas e caipirinhas.
- É um velho tarado mesmo...
  E tão admirada ficou com essa visão de mundo suja e monstruosa, que ela se prostrou a divagar sobre qual era a sua verdadeira metafísica, e se lembrou que Fernando certa vez lhe disse que não há mais metafísica no mundo senão chocolates. A garota, então, em um ímpeto se levantou e correu em busca de um chocolate, que, ao encontrar por dois reais e trinta centavos, o come com a mais pura de suas verdades. Ao engolir o último pedaço, ela sente que seu gênio da lâmpada foi em busca de um outro Aladim, levando junto com ele o tapete voador. E com uma sensação de medo, realidade e clareza, a única coisa que vem à mente da menina é um desejo arrebatador de tomar uma caipirinha.
Com passos decididos ela vai em direção a Sérgio para lhe dizer como sentiu raiva ao ler seus livros, e, quem sabe, convidá-lo para uma bebida. Ela sabia. Ela era um deles. Ela agora fazia parte daquela corja. Aquela corja de tarados.

4 comentários:

  1. Estudantes de Letras, amantes da Literatura e autores, se aventurando no meio fértil, rico e propenso dos Fóruns das Letras em Ouro Preto! Momentos memoráveis que você soube tão bem permeá-los com seu tapete mágico! Você está cada dia escrevendo melhor, Júlia! Particularmente, me emocionei aqui!

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  2. Adorei modo como coloca as palavras!!
    Digo que pude me identificar no primeiro parágrafo!!!

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  3. Que narrativa maravilhosa, Júlia. Curti demais essa coisa das fantasias da mina se misturarem com a realidade e no fim ela acabar se tornando uma com a "corja de safados". Adorei! =D

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  4. Ju, adorei a leitura! E adorei as reticências, as quais sempre gostei de utilizar ao escrever.
    Típico dos que deixam o pensamento a fluir sem verdades absolutas, sempre abertos às possibilidades do que está além do escrito...
    Belo texto! ;) bjus...

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