Os comedores de pedras
Desde que vi aquela carcaça bovina
abandonada a toda sorte de infortúnios aos quais somos passivos neste estranho
mundo de loucos, não consigo afastar de mim a ideia de arrancar-lhe os dentes a
marteladas. Um desejo meio sado-anatômico ou escatológico, não sei, mas que me
fez muito bem, visto que antes estava assolada por outras vontades que acabaram
danificando alguns dos melhores exemplares de minha arcada dentária. Ao passo
que acabo de notar uma grande recorrência dental em minha vida, penso se não
deveria praticar o ofício odontológico, ou mesmo estudar a Inconfidência
Mineira. Deixando as dúvidas profissionais de lado e não resistindo ao novo
desejo, me vejo parada no acostamento de uma estrada que passava na divisa de
Minas - São Paulo, curvada a 90 graus debaixo de um sol escaldante e na
presença de moscas, dele e da dita carcaça. Com ferramentas típicas de um
geólogo, eu martelo a boca bovina com tal voracidade e desejo que uma plasta de
baba escorre de minha boca e pinga no martelo ao mesmo tempo em que o enorme
dente do finado zebu é expelido sem nenhum dano.
Enfim, meus músculos se relaxam, dou
um suspiro aliviado e deixo cair o martelo ao meu lado com uma sensação de
trabalho cumprido e gozo libertado.
Olho mais uma vez para a carcaça do
animal pensando em como meu ato representa a violação de um corpo, cadavérico,
mas um corpo. No caso, uma cabeça. Não fui assolada por nenhum sentimento de
culpa. Um corpo morto nada significa, é comida de vermes, é adubo para a terra.
A vida já foi transferida para outro lugar, para o todo. Mas, olhando para o
cadáver bovino e pensando na morte, nada mais normal que conduzir meus
pensamentos para o futuro e para a minha própria morte. Porém, contrariamente
ao curso natural do pensamento, volto minha mente ao passado e começo a pensar
em como fui parar nessa estrada desconhecida a martelar uma cabeça a fim de
arrancar-lhes os dentes. Não deveria estar no conforto de minha casa
ocupando-me em ler Memórias Póstumas de Brás Cubas? Percebo agora que morte e
dentes é uma constante em minha vida.
Era um daqueles domingos bobos com
gosto de sol quente e cheiro de comida de mãe, ou de sogra ou de avó. Nada que
a cidade oferecesse de quase interessante nos faria mudar de ideia em relação a
pegar a estrada e ir contra o vento. Quando se faz um pacto para viver, devemos
experimentar todas as sensações e tudo o que o mundo tem para nos ensinar. Eu
já havia sentido vontade de comer coisas que não eram feitas para tal, como
cortinas, bóias e giz de cera. Cores em geral. Já o geólogo, não sei. Ignoro se
presenciei sua primeira vez em comer algo de tão difícil digestão ou se era
costumaz que fizesse isso. Talvez a segunda opção, já que o fez muito espontaneamente
e de bom grado. “Vamos comer pedras”, foi o que o ouvi dizendo. Comer pedras
justo hoje que tenho vontade de comer comida? A comida da mãe dele... O que
será que ela tem de especial? Digo a comida, não a mãe dele. “O quê?” –
pergunto. “Vamos coletar pedras”. Ah! Coletar pedras! Coletar! Não comer,
coletar! “Vamos a campo, a gente pega a moto e vai coletar algumas amostras,
isto é, se você quiser”. Se eu quero? Se eu quero? Quem não iria querer ir para
a beira de um barranco no meio da estrada catar pedras em um domingo
ensolarado? “Claro que quero”.
Um convite para coletar amostras
havia me sido feito duas horas antes de me encontrar na situação de Tiradentes
moderno. “Tenta com isso”. O geólogo me passa a talhadeira. “Bate o martelo
nela e ela na junção do dente com o osso”. Que ideia genial! Assim como o
diretor de cinema tem uma câmera, o pintor tem um pincel, o escritor tem uma
caneta, o geólogo tem uma talhadeira, que funciona juntamente com o martelo
geológico fêmea. Isso mesmo. Mar-te-lo-ge-o-ló-gi-co-fê-mea. Admito ser um nome
um tanto quanto estranho para uma ferramenta tão simples. Mas já que a situação
também não era lá muito trivial, aceitei de bom grado dar umas boas marteladas
na talhadeira com o martelo geológico fêmea. Isso não me impediu de sentir uma
pontada de ciúmes, visto minha condição de mulher no mundo em que tudo é luta e
conquista, ainda tenho que disputar o amor de um homem com um martelo. Ou
melhor, uma martela!
E mais uma vez em um curto espaço de
minutos, sinto mais um fio de saliva escorrer pelo canto de minha boca, ao ver
o belo exemplar que o geólogo tirou do nada, ou melhor, do barranco. Era uma
daquelas não muito duras, não muito moles, querendo virar terra... “Achei a
amostra que eu estava procurando”. Isso! Amostra. Naquele momento me senti como
um daqueles dependentes químicos para os quais todo dia é uma luta, e um único
estímulo faz tudo desabar. Passei a língua pelos dentes e senti as restaurações
não muito bem feitas, realizadas por um odontologista que não teve a
curiosidade de perguntar como eu os havia quebrado daquele jeito. E, diga-se de
passagem, me cobrou um precinho camarada e acabou me contando alguns
segredinhos de alcova guardados naquele consultório. Ainda faço visitas ao
dentista, mas não para restaurar os dentes.
Amostra. Aquilo mais me parecia um
banquete. Um banquete sinestésico em que uma simples visão despertava em mim
aquele gosto amargo na boca. Minto! Um azedo que retorcia meu rosto e coçava
minhas gengivas. Não, não! O doce mais doce que qualquer poema apaixonado. “Que
bonita” – eu disse. “Parece boa. Qual será o gosto?” Para a minha surpresa, o
geólogo levou a amostra à boca e deu-lhe uma lambida canina. “Tem gosto de
pudim”. Ao ouvir tal resposta, senti por todo meu corpo uma excitação
avassaladora. Não sabia se pela doçura que a pedra apresentava ou se pela
cumplicidade que ele me apresentava. “É doce” – pensei ou disse, já não sei. “E
ele também... Ele também é assim.” Deixei cair as ferramentas geológicas
femininas e considerei terminado o ofício de extração dentária de bovinos. Indo
em direção do geólogo, só tinha olhos para a pedra-pudim. Que antítese de
botequim. Pedra-pudim! “Deixa eu experimentar”. O geólogo me passou a amostra e
eu a manuseei com todo o cuidado. Ao sentir sua textura em minhas mãos, me vi
num dèja-vu alucinante em que sons, imagens, odores e sensações se misturavam
em uma louca sinfonia de cores e sabores que dançavam por minha cabeça.
“Mudei de ideia. Toma, põe na bolsa”
– disse devolvendo a pedra ao geólogo e virando as costas a ele. Senti uma gota
de suor escorrer pela testa. “Você não quer?” – ele me perguntou. “Não, prefiro
as cortinas da sua casa”. O geólogo explodiu em uma gargalhada solitária. Com o
canto do olho, vi ele pegando do chão o martelo geológico fêmea. Com ele (ou
ela), ele quebra um pedaço da amostra e o coloca na boca. Começa a mastigar
incessantemente. O sol me queima o rosto, sinto mais gotas de suor escorrerem
pelo pescoço enquanto ouço o som de dentes quebrando algo duro ao mesmo tempo
em que escuto os segredinhos de alcova sussurrados na voz safada daquele
dentista. Me volto para o geólogo e vejo fios de sangue escorrer por sua boca,
o sol me queima, não há vento nenhum, o ar parado e vermelho corta a
respiração. Ouço barulho de marteladas, aquela carcaça ao meu lado jorra também
sangue pela mandíbula, sinto que estou segurando algo, será a talhadeira? Não,
não é, ergo minha mão na altura dos olhos e vejo aquele motorzinho de dentista
sujo de sangue enquanto o maldito vestido de branco me toca no pescoço e
sussurra no meu ouvido. No esquerdo.
De repente me vejo sentada na moto
com algumas pessoas próximas a mim. Mas acho que não estou na moto, isso se
parece mais com uma cadeira. Há uma garota com cara de insone e uma tatuagem
que parece um símbolo egípcio. Ela espera alguém. Vejo uma moça um pouco
angustiada para se lembrar de algo, ela repete algo incessantemente, algo sobre
um sargento, mas não consigo ouvir muito bem, pois sua voz é abafada pelos
gritos de um rapaz na sala ao lado. Vejo uma garota sentada em um tapete, de braços
cruzados segurando uma lâmpada. Enquanto observo, vejo se aproximar de mim um
homem grande, alto. Quem será ele? É o dentista? O que ele está fazendo aqui? O
que ele tem na mão? Será uma pedra? O homem se aproxima bastante a ponto de eu
notar que ele não é o maldito dentista. Eu o confundi, pois está vestido de
branco. É o geólogo.
“Que calor faz hoje, não? Aqui está
seu comprimido. Não o mastigue, hein? Engula inteiro com água. Toma, trouxe uma
caixa de giz colorido pra você”.
Parabéns, vc é uma mulher muito talentosa, gostei muito e achei interessante duas coisas, a moto e o sargento...kkkk
ResponderExcluirLeonardo Kaiser
hahahah que coincidência né???
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